sábado, 19 de março de 2011

Demônios e o final de uma injusta antítese.


Assustador. Familiar. Desafiador.
Passei tanto tempo dilacerando meus demônios - e quando me escancararam este texto, caí como num pote de mel, mas disse "não machuco a mim mesma tanto assim".
Sim, eu me machuquei, e muito mais. Mas ontem, depois de muito tempo sem feridas, um deles me veio. Por isso hoje lhes convido a conhecer os (seus) demônios.
Ao contrário de antes, ontem os meus não me encontraram. Eu mesma os criei. Eu mesma, sem perceber, não tinha ontem espaço.
Perdi o apreço pelo que rasteja - ou precise me ver rastejar. Amarga a boca aquele que necessita do meu choro para se sentir vivo. Desprezo-o desde ontem.
Coube a todos manifestar em forma de pressa pequena e lágrima seca. Desespero? Eu o comecei. Como se introduzisse por meu próprio discurso a inevitável e avassaladora invasão. Mas de repente, era alívio. Era alívio e eu não via!
Num segundo, o demônio que nem estourou, vazou e estancou a ferida. Ficou o eco barulhento do silêncio contido nas últimas palavras presas.
Até o próximo demônio? Não mais. A paixão não veio. E o último demônio partiu salivando decepções. Babou enraivecido, deixando rastros que apagaram sozinhos. Não saberei mais onde ele foi estourar - e sei que não será aqui.
Sem paixão, não há mais desejo - o desejo de dor, cujo cheiro é o que atrai os demônios.
Eu desejo aquilo que se instalou como mágica, sorriso e plenitude em meu ombro esquerdo, numa noite em que eu esperava pela dor. Quando, ao sairmos, um paraíso disfarçou-se de jardim, a hipótese chamou-se banco de concreto, e o início embrulhou-se em simples beijo demorado. 
Eu desejo o que me fez feliz a ponto de me confundir a pensar que tanto assim só pode ser mentira. E contemplo não encapar de passado o amor que se abre inédito. E não mais atribuirei ao ontem um sentimento que é presente. Comprometo-me a reler todos os dias o bilhete que diz que este presente é todo meu.

Eu quero a verdade. E nunca mais chamá-la confusão. A verdade, este sentimento que agora tem todo o espaço.
Adeus metade. Adeus dúvidas.
Sem paixão pela dor do que não é, hoje eu me despeço, impotentes demônios.
Ao que chegou, brindo com You raise me up - Josh Groban. (não deixem de clicar!!!)



 
SOMOS NOSSOS PRÓPRIOS DEMÔNIOS, de Roland Barthes

DEMÔNIOS: O sujeito apaixonado tem às vezes a impressão de estar possuído por um demônio de linguagem que faz com que ele se fira e se expulse – como diz Goethe – do paraíso que, em outros momentos, a relação amorosa constitui para ele.

1. Uma força precisa arrasta minha linguagem para o mal que posso fazer a mim mesmo: o regime motor do meu discurso é a roda livre: minha linguagem aumenta de volume, sem nenhum pensamento tático da realidade. Procuro me fazer mal, expulso a mim mesmo do meu paraíso, me empenhando em procurar em mim imagens (de ciúme, de abandono, de humilhação) que me podem ferir; e, aberta a ferida, eu a sustento, e a alimento com outras imagens, até que uma outra ferida venha desviar a atenção.

Goethe: “Nós somos nossos próprios demônios, nós nos expulsamos do nosso paraíso” (Werther, nota 93)

2. O demônio é plural (“Meu nome é Legião”, Lucas 7-30). Quando o demônio é repelido, quando finalmente lhe impus silêncio (por acaso lutando), um outro levanta a cabeça ao lado e começa a falar. A vida demoníaca de um enamorado parece com a superfície de uma solfatara; bolhas enormes (quentes e pastosas) estouram uma atrás da outra; quando uma se desfaz e se acalma, retorna à massa, uma outra, mais longe, se forma, cresce. As bolhas "Desespero”, "Ciúme”, “Exclusão”, ""Desejo”, “Conduta Indecisa”, “Medo de perder o rosto” (o mais malvado dos demônios) fazem “ploc” uma atrás da outra, numa ordem indeterminada: a própria desordem da Natureza.

3. Como repelir um demônio (velho problema)? Os demônios, sobretudo se são linguagem (e poderiam ser de outra coisa?), são combatidos pela linguagem. Posso portanto ter esperança de exorcizar a palavra demoníaca que me é soprada (por mim mesmo) substituindo-a (se tenho o talento da linguagem) por uma outra palavra, mais calma (caminho para a eufemia). Assim: eu acreditava ter finalmente saído da crise, quando uma loquela – favorecida por uma longa viagem de carro – toma conta de mim,agito constantemente no pensamento o desejo, a saudade, a agressão do outro; e acrescento a essa ferida o desânimo de ter que constatar que recaio; mas o vocabulário é uma verdadeira farmacopeia (veneno de um lado, remédio do outro): não, não é uma recaída, é só um último sobressalto do demônio anterior.

(Fragmentos de Um Discurso Amoroso, tradução de Hortênsia dos Santos)



Um comentário:

Falando com o Timor disse...

acredite....expulse...mas a que se conviver com essas bolhas que explodem para que o novo venha.....