sábado, 28 de maio de 2011

Antes que deixe de ser ontem

Antes que ele deixe de ser ontem, ficando ainda mais pro fundo da gaveta, e que os remédios causem menos confusão, o Chapeleiro Maluco, o tempo e eu lhe contaremos uma história.
Vou lhe contar de realidades aparentemente inventadas, para isso chamei o Chapeleiro. É nele que está toda dose exagerada do inimaginável que você não possa aceitar. E o tempo, este "mano velho", é o nosso convidado de honra.

2h43 - Depois de uma hora inteira com três cochilos e quatro ameaças de perder os sentidos (ei, essa que vive a desmaiar não sou eu?, pergunto - faz cara de sarcasmo o Chapeleiro), ela disca para a última pessoa que gostaria de discar - não de ver, apenas de discar, por incômodo mesmo.
Mas o celular deu de inventar que os números não existem e anda aprontando, não é de hoje.
No escuro, a luz do celular ainda acesa, passeava por outros nomes que lhe dessem liberdade para pedir ajuda quando o aparelho vibrou escancarando um nome, no mínimo, inusitado para aquele horário. (Ei, Chapeleiro, calma lá! Nem tanto! Horas antes você havia despachado um "cadê você", que por erro de digitação foi para o contato debaixo, e disse que tentar consertar não seria preciso! Agora se vira!).
Mas o número saltou discreto, direto, objetivo. E incisivo. Justo diante dela, que chamava por socorro. Tirou o olhar, depois devolveu a atenção para a tela, tudo para ver se ela se apagaria. Que horas seriam? Franziu a testa, doía o estômago, lembrou-se do medo de perder os sentidos, tinha frio e dor. Parou de pensar e atendeu. 
Eles não se falavam há apenas semanas ou menos que isso (então, onde está o drama?) e tinham uma liberdade pra soltar palavras que quase não cultivava com ninguém. Que cultivara ao longo da vida com raros quatro ou cinco cabeças malucas. Deu tempo dela responder o "onde você está agora?" e contar o que sentia. Ele desligou e ela tinha que procurar as chaves e chegar sem tombos até o portão. Pouco fácil.
E a hora avançada? Que horas seria? A situação constrangedora de ser socorrida pelo improvável fazia toda a pirofagia de dúvidas. O que mais seria um encontro na madrugada, Chapeleiro? Tem cheiro de uma só coisa.

Ele demorou o suficiente para que ela, ao ficar de pé, cambaleasse; pedisse ao Chapeleiro um pouco de sal e engolisse em excesso. Tomou, sem água, um remédio pro estômago - aquele que dá muito soooooo....no. Teve frio, imenso frio. Os dentes batiam sem pausa. Depois, o corpo cansou.
Abriu o portão sem muita força e enxergava pouco. Mas cabia a lembrança (e sempre se lembraria) da fatídica vez em que ele passou pelo portão às pressas, com crachá de visitante indesejável - coisa que nunca fora, na verdade.
A culpa, a vontade de sempre pedir desculpa enquanto existisse o portão, tudo ali, com a imensa dor no estômago e a falta de equilíbrio. Ele chegou no mesmo portão. E lhe deu um abraço para cortar o frio. Terminou de girar a chave ainda sustentando o abraço, com o qual entrou. 
- Vamos ao hospital.
- Claro que não! Óbvio que não!
- Ué, mas você tá mal!
- Eu sei, mas vou passar mais mal ainda entrando num hospital do seu lado. Bizarro! Eu não vou, de jeito algum!
Por incontáveis vezes, ela pensou perder os sentidos. E a dor no estômago deixava tudo confuso demais. Aceitou o abraço como se não tivesse braços. Tinha sono e não conseguia vê-lo, mesmo com as luzes acesas. Deixou-se - ela não tinha nem outras duas ou três ideias na cabeça. O sono vencia, a dor vencia, a fraqueza vencia.

Como observou o Chapeleiro, no mais quase tudo foi silêncio. Acordou por dez ou mais vezes. E ele, percebendo, apertava os braços em volta dela, que reclamava do estômago uma, duas, três, dezenas de vezes. O remédio fez rápido a sua parte. E toda vez que despertava, ela se assustava com aqueles braços em volta.
Acordou com a dor recomeçando. Pensou em correr para onde não ficasse sozinha. E fez isso imediatamente. No caminho, teria o tempo para sentir toda a vergonha que carregava pela companhia tão desajustada para uma noite de dor e xilique. Não deu tempo. O telefone tocou, e lá vai saltar o nome improvável de novo. Ela corou, e sorte que ele não viu! Da próxima vez, pensou, passa mal mas não passa por isso de ficar colorida, tentando achar palavras que agradeçam.
O desajuste pra ela não estava só no socorro, nem no abraço, mas no papel que ela o via fazer. Por que as pessoas tem que ser uma só pela vida inteira? E por que as estranhamos quando as vimos assumindo papéis distintos? O improvável pode ser muito melhor. Obrigada, Improvável da madrugada de ontem, por me deixar constrangida, ao me lembrar da nossa incapacidade de ser natural quando uma pessoa sobre a qual já pensamos tantas coisas diferentes, em momentos emocionalmente diferentes, e tempos diferentes, se faz mais uma vez, mas pela primeira vez forte assim, diferente diante dos nossos olhos e se mostra alguém muito melhor.


Nenhum comentário: