terça-feira, 16 de março de 2010

Peso

Fato é que a leveza se instalou. Meu caro amigo, por favor, tiremos as formalidades. Nesta sala branca onde vagam sutilezas, entre cedilhas e trocadilhos, e onde tantas vezes já vagamos, nunca houve segredo.
Você percebe os instantes mais finitos, para falar deles depois e eu saber como aconteceu o que eu não assisti, por estar do lado de dentro, o de lá, o de dentro de mim.
Fato é que a leveza se instalou. Você sabe, eu gosto de jogos e peças e lances. Mas agora, meu amigo, a intenção não vem. Fato é mesmo que a leveza se instalou. Tirou o lugar de algo? Não sei. Não pergunte. Não fale com ela. Estranho, sim. Eu estranho, mas não vou interrompê-la somente para satisfazer uma curiosidade - que eu nem tenho, veja como é fato que a leveza veio.
Sempre há a primeira vez, e esta é dela. Deixe-a nessa pose de pássaro que num galho finíssimo consegue permanecer. Porque tudo em seu corpo, seu equilíbrio, sua massa, formaram-se para que fosse assim. Fato é que a leveza tomou posse. E titubeou por dois segundos não percebidos.
As duas flores que dormiam no pequeno vidro caíram sem se curvar. Mas o vento que chegou e levou tudo em volta sequer viu. Elas ficaram mais vivas depois de tudo. E as cores voltaram intensas, como não se viram antes, exceto nos primeiros dias, talvez. Uma alegria tatuou pétala por pétala. E elas não murcharam mais.
Antes e depois. Nascemos e morremos contrastando as cores. E quando se ganham este quê que não é liberdade, porque não estavam detidos, nem felicidade, porque esta tinham também, inevitável é a comparação. Porque é inevitável entender que a leveza tomou lugar.
Nos chega velho e feio quando alguém diz que a esperança brilha nos olhos. Pobre construção - mas que a gente enxerga, queira ou não. Ela não sabia um jeito de viver essa felicidade estranha, diferente. Ele não a tinha, mas vivia. Assim, ficava mesmo impossível saber quem pecava mais: ela, que escondia sozinha uma sensação que não deveria sentir tão cedo, ainda que não tenha escolhido sentir, ou ele, que conseguia tão bem fazer brilhar os olhos. Depois da partida, outro peso, outra medida.
Ela escreveu para ele: não sinto os sentimentos, porque você levou eles todos. Mas a segunda parte ele não ouviu. Quando se encontraram, ele já tinha escrito a ela: não sabia o que fazer com eles, joguei-os fora. Mas ela não recebera.
Ela chorou, e seu arrependimento só não foi maior que a raiva. Sempre achava que a culpa era toda dela por escolhe-lo e depois não saber lidar. Ele parou de chorar e partiu em busca de outras escolhas, antes de ver as lágrimas dela. E ele queria tanto ficar! E ela queria tanto que ele nunca tivesse partido.
Fato é que a leveza se instalou. Do resto, não vamos mais dizer.

Nenhum comentário: