segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Burn out


Primeiro foi um solavanco, um levantar da cama que antecedeu o próprio despertar; foi um corpo sentado, com as pernas esticadas, as costas duras, os braços retesados, o peito pesado, pesado, pesado; um peito com concreto, um coração desprendido, perdido, preso na glote, preso na glote tentando saltar ao céu da boca; o céu totalmente escuro lá fora, o céu totalmente seco na boca; os dentes prendendo os próprios dentes e a inconsciência pastosa muito aos poucos diluindo-se a sair pelos pulmões que saltavam, deixando só então entrar um pouco de realidade.
Depois, de um barulho qualquer na noite, foi um pulo da cama, meu passo pesado cortando a casa, o olhar dilatado, a janela, o silêncio, o silêncio, o silêncio, o batuque no peito subindo a garganta; as horas alerta até a chegada do sol. Mas ainda teria a pior noite. Aqueles corpinhos brancos daquelas crianças mutiladas e o sangue coagulado na brancura reluzente que atravessou o sono, mas despertando os olhos tarde demais. O pesadelo disposto a recusar-se a ir embora, mesmo com a água no rosto, o soluço no choro e as tantas tentativas de dizer à própria angústia que o raiar do dia faria a imagem desaparecer. Eu a vejo até hoje. Às vezes me pergunto se algum dia ela irá embora.
Teve a perda de palavras, que eu tentei explicar para algumas, poucas, pessoas. Com certeza uma das duas dores mais difíceis. As minhas palavras eram as minhas preciosidades, e mudaram para um ponto onde eu não as alcanço mais. Ficaram somente essas. Justo as simples. As que eu nunca escolhi usar. Junto com elas, partiram as memórias – só deixaram a memória de saber que elas se foram e a dor de imaginar meus arquivos de mente e de alma vagando sem órbita sabe-se lá quão incapazes de voltar.
Teve também as coisas sobre as quais as pessoas preferem dar comprimidos a dar importância. A dor na nuca que circula a cabeça para enlaçar a testa com força. Essa dor riu de cada alternativa que chegou - em gotas, comprimidos, intravenosa ou intramuscular. Essa dor está aqui enquanto escrevo, como se tivesse nascido comigo e só agora eu a notasse. Teve a dor nos ombros, insistente e bruta, fazendo companhia para o saco de concreto no peito que chegava antes do canto das primeiras aves lá fora.
Teve a sombra, visível a quem passa o dia tentando fugir. Pequena nos primeiros segundos, incalculável no decorrer das horas, numa crescente sem chance de explicar. Como se uma folha seca caída no chão pudesse ser de repente o abismo que traga e atrasa todos os passos e horas, tornando em peso e pressa o que antes era só um sopro. E o sopro de vida condensado num pesadíssimo desespero pelo que há de vir.
Teve também aquela porção de coisas visíveis que ninguém vê. A comida grudada no prato, as palavras aceleradas, os pensamentos com pressa, a pressa, a pressa, a pressa. A ausência, o atraso, o sumiço. As desculpas. Cada desculpa! Teve a tarde em que o semáforo abriu como num dia qualquer mas o carro não saía do lugar porque o cérebro resolveu não colaborar mais.
Teve a dificuldade imensa do romper do choro. Mas depois finalmente teve choro, e teve muito. Dezenas de vezes. De manhãs, de tardes, de noites. Longas. Curtas. No travesseiro. Na rodovia. No banheiro. Mas teve muito mais sorriso. O sorriso de lábios colados, que é fácil de dar, que evita perguntas, corta um assunto, faz seu papel. Teve sorriso-cansaço, sorriso-incapacidade, sorriso-isolamento, sorriso-desesperança, sorriso-incompetência, sorriso-prostração, sorriso-medo, sorriso-impotência, sorriso trêmulo, sorriso com pressa, sorriso doído de dentes cerrados travando a pressa de fugir.
Não tem texto para o tanto que teve, para o tanto que ninguém percebeu, para o tanto que eu tentei e não consegui prever. E teve o dia em que a velocidade de todas essas muralhas chocou-se ao mesmo tempo no espelho e, o que de tanto resistir, resistir, resistir, na paralisia instintiva de cada força, retesou-se - a fim, enfim, de deixar-me ir; deixar-me deixar, deixar, deixar-me.

4 de outubro de 2018
Relato meu | Fotos de Heitor Fernandes
Edição da imagem: Drico Coelho

Nenhum comentário: